02 août 2006

Cidadania: (in)Justiça portuguesa

Mais uma vez a Justiça portuguesa parece estar na ribalta. E não pelas melhores razões. O que choca no julgamento do caso Gisberta não são as penas ligeiras (afinal trata-se de menores e a justiça optou por não os responsabilizar, mas também não responsabilizou o Estado, responsável pelos menores). Deu assim um mau exemplo. Mas o pior é realmente o silêncio do Estado e o facto de nem sequer se ter reconhecido que se tratou de um assassinato, involuntário por ventura, mas que terminou em morte, e em condições terríveis. Mas afinal era apenas uma transsexual brasileira, debilitada pela sida. Pouco valor para a vida humana.

Apenas mais um caso da justiça portuguesa. A juntar por exemplo ao caso do apito dourado, que parece ter sido esquecido ou se calhar prescreveu, como tantos outros. Qualquer comparação com o caso de corrupção no futebol italiano é pura coincidência. Naquele país tudo ficou esclarecido e foi julgado em três meses! Caso para envergonhar a justiça portuguesa. E nem sequer já falemos de tantos outros casos de corrupção que devem desaparecer como por magia nos tribunais, ou por exemplo no caso da Casa Pia, que parece nunca mais terminar. Até que um dia tudo prescreve, por ser demasiado tarde ou porque os procedimentos legais não foram cumpridos. E porque advogados muito bem pagos são eximios em encontrar as debilidades do sitema, em favor de quem pode pagar (bem). Algo parece ir mal na justiça portuguesa.

Foi hoje conhecida a sentença do “Caso Gisberta”: os 13 menores envolvidos foram condenados a penas de internamento entre onze e 13 meses em centros educativos, segundo noticiou o jornal Público online. Afinal pouca diferença em relação à situação actual dos jovens.

Vários grupos de defesa dos direitos dos homossexuais reagiram com indignação à sentença aplicada aos 13 jovens envolvidos nos maus-tratos à transexual Gisberta Salce Júnior, e que terão levado à sua morte, em Fevereiro no Porto. “O sentimento de injustiça e de impunidade gerado por este julgamento é chocante, mas é sobretudo agravado pelo completo silêncio do poder político, que não fez ainda qualquer reflexão sobre as suas responsabilidades neste caso. Para o poder político, Gisberta parece não ter existido”, refere a Associação ILGA Portugal em comunicado. O poder judicial optou neste julgamento por “não responsabilizar” os menores, a instituição que os tutelava e o Estado, que é na opinião da ILGA o “responsável último pelos menores institucionalizados”. Para João Paulo, do Portugal Gay, e segundo a Lusa, as sentenças constituem “motivo de vergonha para toda a sociedade portuguesa e sobretudo para o sistema judicial português”. “A minha primeira sensação é de que a vida humana parece não ter qualquer valor para estes senhores juízes, até porque não foi um assassinato qualquer, foi um crime precedido de três dias de torturas cruéis a uma pessoa que já estava extremamente debilitada” (pela doença e pela fome). João Paulo fez votos para que “a família da Gisberta consiga o maior apoio possível para que possa processar o Estado português por omissão de justiça”.


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Como (bem) escreveu Amilcar Correia no jornal Público, "Gisberta terá morrido porque não sabia nadar ou porque, sabendo-o, não o quis fazer, pelo que só se pode concluir que este foi um suicídio".
"A aplicação da Lei Tutelar Educativa aos jovens com mais de 14 anos envolvidos nas agressões à transexual Gisberta implicava a aplicação da medida mais gravosa, o internamento em regime fechado, se... Se o Tribunal de Menores do Porto, que julgou o caso, entendesse tratar-se de homicídio. O que não aconteceu. Lê-se e não se acredita. Os maus tratos continuados a que Gisberta foi sujeita durante uma semana - agredida a murro e a pontapé, com paus e com pedras, até ficar inanimada - foram uma "brincadeira de mau gosto" de um grupo de jovens que actuou de forma leviana. E que não agiu daquela forma pelo simples facto de se tratar de uma transexual, quando o mesmo tribunal deu como provada que foi a curiosidade sexual pelo corpo da brasileira que motivou as agressões. Depois de espancada várias vezes (e se não abandonou o local foi porque se encontrava num estado que a impedia de o fazer), o seu corpo foi atirado para um poço com a profundidade de 15 metros, juntamente com um barrote e certamente com alguma intenção".
E termina:
"A sentença branda do tribunal, que deu como provados crimes de ofensas à integridade física qualificada na forma consumada e crimes de profanação de cadáver na forma tentada, em nada contribui para a "educação para o Direito" de que fala a Lei Tutelar Educativa e legitima todas as dúvidas sobre se não terá sido o estatuto da vítima a ditar o desfecho do caso. A negação da existência de homicídio, como se quem matasse fosse a bala e não quem prime o gatilho, é o corolário de uma acumulação de exclusões: Gisberta, nascida Gisberto Júnior, há 46 anos em S. Paulo, imigrante ilegal, seropositiva, com hepatite, prostituta, toxicodependente e sem-abrigo. E sem ninguém que defendesse a sua dignidade afogada num poço de um prédio inacabado do Porto. O desfecho deste grave e inédito caso é tudo menos pedagógico, quer para a justiça, quer para os menores."

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